sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Partida

Adeus, 2010!

Não tenho a menor idéia para onde você vai, se vai encontrar todos os outros anos que passaram, se vai ficar mesmo no passado ou se voltará em seguida para atormentar o 2011 de alguém.

Talvez não. Tavez você se vá de vez e nunca nem encontre seus anos pares que se foram antes de você. Quem sabe você não vá se perder no infinito? Ou vire uma estrela a mais no céu sem nuvens?

Sempre tive curiosidade por saber para onde vai o ano que se finda. Não gosto de pensar que morre, porque, de fato não morrem os anos. Ficam gravados seus vestígios em nossas vidas. Então, para onde vão? Será que um dia a gente vai se reencontrar em outro lugar que não seja o divã?

Ah, 2010, despeço-me de você como quem se despede de uma pessoa querida, tentanto agarrá-la para que não vá embora. Quando eu me acostumei com você, quando me apeguei, quando senti firmeza na nossa relação... eis que você já está pronto para ir embora.

Adeus, 2010. Mas não diga adeus para a minha memória.

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Aqui está meu arremedo de paródia a Cecília Meirelles.

Reveillion

Eu não tinha este olhar de hoje,
assim vago, assim fugidio, assim desconfiado,
nem estes pensamentos tão compridos,
de tanto olhar o passado.

Eu não tinha esta coragem tão sem convicção,
tão presumida e r
eceosa e reticente;
eu não tinha este sorriso
que nem se nota.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que virada de ano ficou perdida a minha inocência?

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Hotel

Noite fria.
Viajem longa.
Pensamentos múltiplos esbarram-se cansados por entre as quatro paredes da imaginação.
A distância entre a cabeça e a mão parece enorme.
Os dedos movem-se randomicamente em cima do teclado como que bêbados, sem teclar coisa com coisa.
Noite fria.
Viagem longa.
Lá fora a cidade dorme. Ou finge que.
Tal qual meus dedos.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Maria Estruvicá toma um banho de Hollywoood

Quando criança eu adorava as histórias de trancoso que meu pai me contava. Meu pai era o melhor contador de histórias da paróquia! Então vinham crianças de todos os cantos da rua, sentávamos todos juntos, cada qual com seu cobertor marrom de listas vermelhas nas pontas, aquele cobertor de menino de interior, a ouvir as histórias de terror que papai contava as quais, segundo ele, ouvira de sua mãe, que tinha aprendido com a mãe dela, que tinha aprendido com a mãe... até chegar em Eva. E nós as escutávamos com nossos olhos estatelados, sem piscar uma vez sequer. Parece que até a Mãe Natureza ajudava nessas noites de lua cheia, enviando barulhos inquietantes, nuvens que cobriam a lua nos momentos de maior tensão, ou mesmo aquele vento gelado, soprando por trás de nossas nucas. Ao final, luzes do terraço acesas, levantávamos de nossos lugares, aflitos por esperar o próximo dia de histórias bem contadas.

Na verdade, eram sempre as mesmas histórias. A minha preferida, e creio também que a dos meus irmãos, era a de Maria Estruvicá. Aliás, uma história horrível para os padrões atuais e que deixaria de cabelo em pé os psicólogos de plantão.

Para manter a tradição familiar (vejo essas histórias como receitas que ficam em família), contei-as todas para os meus filhos, tim-tim por tim-tim, tal qual ouvi de meu velho pai. Mesmo tendo criado meus filhos na cidade, tentei criar um clima lúgubre, com pouca luz no terraço da casa. Caprichei na entonação de voz, especialmente na história de Maria Estruvicá, em que há um bicho (os atuais monstros dos tempos idos) de voz bem cavernosa que chama a heroína pelo nome bem no meio da noite: "Maria Estruvicááááááá..."

Passou-se a infância dos meus filhos e com ela o tempo das histórias familiares de trancoso. Um desses dias, minha caçula estava fazendo um projeto na escola, aula de literatura, acho, no qual os alunos tinham que trazer por escrito um conto inédito. Não lembro se o conto deveria ser "de terror" ou não. Sei que minha filha chegou e pediu-me que lhe contasse a história "daquela moça que queria muito se casar com um príncipe" e tal. Pensei: Por que não? Marcamos uma hora qualquer e então lá chega ela, com um gravador profissional e tudo mais--tempos modernos--para não perder nenhum detalhe. Vesti novamente a roupa de contador de histórias e me esmerei no fazê-lo. Minha filha não se decepcionou. Ouviu e gravou tudo. Não me contou o resultado do projeto, mas creio que a história conseguiu agradar a todos. Pelo menos eu quero pensar que assim ocorreu.

Ontem pela manhã eu estava vasculhando os textos que há no meu computador quando dei com um em inglês cujo título lia: "The Fate of Maria Estruvicá." Imediatamente eu soube do que se tratava. Li e me diverti com a nova roupagem que a história ganhou, em sua versão americana, como que uma readaptação para os padrões americanos. Pensei: "Hmm! Maria Estruvicá foi a Hollywood, que interessante! Saiu das brenhas dos interiores mais remotos de Pernambuco e descobriu a América!"

Quero compartilhá-la aqui. Quanto à versão original... essa fica para outra hora. Dá muito trabalho escrever uma história como as que papai contava. É muita responsabilidade. Aliás, e como é receita de família, a gente nunca conta o segredo, não é verdade? Um dia, quem sabe, eu mudo de idéia e a coloco aqui. Por ora, deixo apenas o remake broadwayiano.



THE FATE OF MARIA ESTRUVICÁ
by Severo's daughter
Brazilian Folktale
Long ago, in the country part of Brazil, a young girl dreamed of one day marring a prince. She didn’t know any prince’s so she just called him Prince Charming. This girl lived with her parents. Her parents both loved her very much. Her name was Maria Estruvicá. She was beautiful. But she was always waiting for her Prince Charming. Her parents sometime met somebody and said to Maria, “My daughter, you should marry So-and-So. He is a good person.” But she always found something wrong with that person.
So time went by, and results were that Maria Estruvicá stayed single and her parents kept telling her “Be careful, you are never to open a door to some stranger.” But every time someone knocked on the door, she always thought it was her Prince Charming so she always threw open the door, hoping that it was him after all. But it never was. Sometimes it was a stranger, someone neither she nor her parents knew and her parents always got mad at her for disobeying them. They would scold, “No! You cannot open the door to strangers. Why can you not obey me for once?”
And time passed by, soon Maria Estruvicá’s dad passed and few years soon after her mother too. Maria Estruvicá stayed single and grew older.
Now Maria Estruvicá had a little dog that she loved like a daughter. She liked everything about her little dog, Mitzie. Mitzie was very obedient, did everything Maria wanted her to do, and shook paws. So her little dog was Maria’s happiness.
One night, a dark, cold night Maria Estruvicá was already asleep when she heard a noise that woke her up. It was barely a whisper, from far, far away that said “Maria Estruvicaaaaaa”
By then she was a little alert, waiting for the voice to call her name again. As you probably know, back then, animals could talk so Mitzie said “She’s washed her hands, washed her feet and went to bed!” and so, for the rest of the night, Maria did not hear the voice call out her name again.
When morning came, she went to her little dog and said “Don’t do this, little dog. That could be my Prince Charming. You could have destroyed my chance” She was irritated at Mitzie for jeopardizing her chances with her prince.
That next night, Maria Estruvicá had trouble falling asleep but after a while she managed to drift off into a deep slumber. Then, in the middle of the night, she woke up to a voice. “Maria Estruvicaaaaaa” it said. Except this time it was a little closer. But as soon as the voice spoke, Mitzie said “She’s washed her hands, washed her feet and went to bed!” The voice then went away for the rest of the night. Than Maria Estruvicá got up, really angry at Mitzie and said, “Didn’t I already tell you not to say that?” Maria was so mad at poor little Mitzie that she hit her a couple of times, hard. Maria Estruvicá thought that Mitzie had learned her lesson.
So that night, instead of lying down to go to sleep, she sat in her rocking chair to wait. Now, Maria Estruvicá lived right by a river and while hearing the soft murmur of the river, sloshing softly she soon grew very tired and sleepy. She didn’t go to sleep though, instead stayed up the whole night. But no one had called her that night. Maria was very sad. In the morning she had dark, purple circles under her eyes showing lack of sleep.
She was so sad with little Mitzie that she decided not to feed her that day. The poor little dog grew weak and stayed in a corner of the house.
That night, Maria Estruvicá was so depressed that she went to bed almost immediately. In the middle of the night, she heard her name being called “Maria Estruvicaaaaaa.”. This time it was even closer. But as soon as the voice spoke, Mitzie said, “She’s washed her hands, washed her feet, and went to bed!” So, the voice went away once again.
Maria Estruvicá was so enraged that in her anger she hit little Mitzie so much, and so hard that she killed the poor little dog. She threw her out into the backyard, not even giving her dog a little burial. At first she felt really sad, because she had loved Mitzie, but then she thought of her prince and how she was going to marry him that she soon forgot about being sad over Mitzie’s death.
That night she lay down to sleep, but stayed up, waiting for the call. When the voice came and said her name, she noticed that the voice was closer yet again. But the little dog, who was dead, said what she said every night. “She’s washed her hands, she’s washed her feet, and went to bed!” So the voice went away once again.
That morning, she made a huge fire and threw Mitzie in it. “There,” She laughed “See how you stop my prince from coming to marry me again this time!” She laughed again and went inside.
That night, the same thing happened. The voice called once again, this time much, much closer. “Maria Estruvicaaaaaaaa” it said. But then, before Maria could say anything, the pile of Mitzie’s ashes whispered softly and slowly “She’s washed her hands..She’s washed her feet..And went to bed” The voice was barely audible but the voice heard it. So the voice went away.
This time, Maria Estruvicá wasn’t even mad. So that same afternoon she took the pile of ashes and threw them in a river she lived next to. She washed the ashes go down the river and, smirking, went back inside.
That very same night, Maria dressed up in her mother’s wedding dress, with the trail and veil and all. She had picked some white roses from her garden that day and had made a bouquet. She sat on the corner of the bed and as soon as she heard the lovely voice call her name again, she heard a loud knock on the door. This time, there was no one to say that she had washed her hands, washed her feet and went to bed. So as soon as she heard the knock, she stoop up really quickly and screamed “Wait, my prince! I am coming!”. She ran to the doorway and opened it.
When she opened the door, she screamed. ~

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Natal que eu quero

Eu quero um Natal no interior, com papai lendo um texto de Mateus no culto doméstico, seguido da música "Nasce Jesus, fonte de luz!" regida por mamãe, que cantava o tenor.

Eu quero pedir para mamãe me fazer uma linda camisa de Natal (Não, não é uma camisa decorada com renas, sinos, trenós e Papai-Noel. Nada disso. É uma camisa nova, costurada com fazenda comprada naquela loja de Seu Cícero, que fica na praça central da cidade). A camisa é para ser inaugurada no Culto de Natal, juntamente com a elegante calça de brim, vincada do cós ao abanhado, comprada na feira em finais de novembro.

Eu quero um pinheirinho pequeno no canto da sala, sem luzes pisca-pisca, mas lindamente adornado com aquelas frágeis bolas de vidro que tantas vezes me cortaram a mão. Eu quero a surpresa daquelas caixas cuidadosamente embaladas em papel presente, que encontrávamos embaixo das nossas camas, ainda que eu soubesse que lá haveria um par de sapatos pretos vulcabrás, para serem usados na escola no ano seguinte. Ou um vidro de perfume Alfazema.

Eu quero aquela antecipação gostosa no meu espírito ao escutar mamãe comentar os preparativos para a noite de Natal, com arroz-doce, cravo e canela, talvez.

Eu quero a expectativa de chegar à igreja e vê-la decorada com bolas coloridas e festão, mas sem os tais campanários nevados de frio. Eu quero um Natal que eu possa cantar muitos hinos natalinos desde a primeira escola dominical de dezembro. Eu quero abrir o maior bocão e cantar junto com a congregação "Alerta! Ó terra entoa a nova alegre e boa!"

Eu quero aguardar ansiosamente pela solenidade do culto de louvor com a participação especial do coral, vestido com becas cor de vinho e tala branca nos pescoços, cantando os tradicionais hinos de Natal ensaiadas desde outubro, cantados majestosamente a quatro vozes, sem orquestra, sem carrilhão, sem xilofones, sem sinos, sem guitarra nem percursão, mas com a organista pedalando freneticamente o harmônio de canto, dando as notas iniciais dos quatro naipes de cada a música entoada.

Eu quero ver todo mundo alinhado, com expressão feliz falando dos planos para o futuro. Eu quero encontrar todos os meus colegas contentes por terem passado de ano, mesmo aqueles que haviam ficado de recuperação.

Eu quero a ternura dos abraços afetuosos e dos desejos sinceros de Feliz Natal, ao final do culto solene do dia 25. Eu quero a esperança de um futuro bom, de paz e harmonia, feito de sonhos doces, como doces eram os peixinhos de chocolates trazidos pelos tios da capital, que invariavelmente nos visitavam no dia 26.

Eu quero um Natal assim: simples e bom.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sem nome, nem sobrenome.

Tinha na mão o vidro cheio da loção pós-barba preferida. Seu olhar perdido paralizava o infinito refletido naquele espelho completamente embassado pelo vapor denso e quente que subia da banheira semi-cheia. O silêncio do apartamento era interrompido pelo gotejar da torneira mal fechada. Seria por volta das sete e meia daquela última quarta-feira de novembro? Quem saberia dizer? Não faria diferença mesmo. Para nada. Para ninguém. Para ninguém? Nem para Anna, pensou. Baixou o olhar, transportando-se do infinito para o presente. Pela primeira vez em meses reparou na própria silhueta emagrecida e viril. Um grito silencioso atravessou-lhe o pensamento, sufocando-lhe a garganta. Um pedido de socorro? Um soluço?

Olhava atentamente, mas não se reconhecia. Tentava, ainda que tardiamente, compreender toda aquela mudança. Tentava, mas não conseguia. As mãos tremiam, as pernas tremiam, o corpo febril ardia, abrindo-lhes os poros de onde saiam gotas geladas de suor. Seu olhar voltou-se novamente para o infinito. Quis sorrir. Os lábios entreabriram-se num sorriso de Mona Lisa. Não ouviu o telefone tocar. Fechou os olhos, deixou cair a cabeça para trás e encheu os pulmões com o aroma amadeirado que naquele instante subia da cerâmica fria, incensando todo o banheiro. O telefone continuava tocando. Pois que toque. Sentou-se na borda da banheira, sereno como serenas são as cálidas manhãs outonais dos novembros californianos. Não teria pressa. Não havia porquê. A água quente contrastava com a frieza dos seus atos, milimetricamente calculados e talvez alguém até ousasse pensar que também fora calculada a sincronia perfeita do toque do telefone com o vidro de perfume que escorregara de suas mãos.

- Alô, Cizinho? Alô? Cizinho, fala comigo, por favor...

Não, por favor, digo eu. Sem nomes, sem nomes.

- Cizinho, atende esse telefone, anda. Posso passar aí? Tô passando aí, viu? ... Cizinho? ...

Shhhh... O dedo nos lábios, no gesto universal de silêncio, dividia equitativamente o sorriso de La Gioconda. Shhh, não fala nada, por favor. Não diga nada. Não diga nomes...

O olhar turvado pelo carmesim que tingia a água da banheira há muito já não se fixara no infinito. Nem no presente. Ou no passado. Olhava, mas já não via. Nem ouvia mais o gotejar da torneira incansável.

Do outro lado da rua passava o coletivo em direção ao centro. Acomodados confortavelmente em suas cadeiras, Josés flertavam com Marias que, sorrindo candidamente, retribuiam-lhes os olhares sedutores.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Vingança: um prato que se come quente.

Era noite e eu cumpria meu horário no Piazza Italia Ristoranti. Já passava das 19h30 e eu sentia fome, mas eu sabia que não me permitiria empanturrar-me das deliciosas massas que lá são servidas. Depois de correr os olhos de cima a baixo do cardápio várias vezes, decidi-me pela insalata mista pequena e uma porção de peito de frango grelhado.

Nham! Nham! A comida estava deliciosa! Saboreei tudo o mais lentamente possível, considerando que eu estava trabalhando e atento ao movimento do restaurante.

De repente senti a força de um olhar em minha direção. Virei-me e deparei com uma baguete que é servida antes das refeições. Ela piscou para mim, oferecendo-se quentinha e cheirosa. Fingi não perceber e passei ao largo, dirigindo-me à cozinha, onde fui deixar meu prato para lavar. No retorno, olhei de soslaio para ela que, mais que rapidamente, piscou novamente para mim. Indignado, ignorei.

Caminhei pelo salão do restaurante checando as mesas e cumprimentando alguns clientes. Aquelas duas piscadelas, entretanto, não me saíam da cabeça. Por mais que eu tentasse me concentrar em alguma atividade, mais eu via em minha frente aquela baguete prostituta piscando desavergonhadamente para mim. Parecia ter sido aluna de Seruya Velázquez*.

Decidi resolver de uma vez a situação. Dirigi-me à mesa onde ficam os pães e respirei fundo. Peguei a faca-serra. Segurei a baguete com a mão esquerda e com a direita decepei-lhe bruscamente o olho. Numa vendetta silenciosa e cruel, comi devagarzinho cada pedaço daquele olhar obceno, totalmente entregue ao prazer daquela vingança.

Sem a luxúria do pão a atormentar-me a mente, dediquei-me às minhas atividades normais e a noite transcorreu tranquila e bastante calma.

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* N.A. - para saber sobre Seruya Velázquez, clique no link abaixo:

sábado, 5 de junho de 2010

O incidente

Ajeitou as calças na cintura, puxou-as um pouco mais para cima. Não ficara bem. Puxou-as de volta para baixo. Sentiu-se pior. Exasperou-se: "Por tudo que é mais sagrado!" Desviou o olhar fingindo não entender a mensagem contundente que o velho espelho manchado pela ferrugem dos pregos que o seguravam lhe oferecia. Optou pela falsidade jovial da camisa estampada, cujos primeiros botões abertos deixavam à mostra o peito cabeludo e o cordão de ouro. Desensacou-a como que causalmente para esconder o ilhós aberto e a banha branca, comprimida pelo cinturão de couro marrom atacado no penúltimo furo. Prometeu-se pela enésima vez que recomeçaria sua dieta na próxima segunda-feira. Respirou com alguma dificuldade, tentando juntar os pedaços de sua auto-estima no chão daquele banheiro que exalava clorofórmio.

Qual o problema, capitão? Nenhum. Nenhumzinho. Sério, nenhum mesmo! Repetiu para si mesmo em voz alta: nenhum! Enxugou o suor da testa com o lenço ensebado. Agora resolvera andar de lenço no bolso da calça. Aliás, nem se dera conta de que o surrado lenço, que um dia fora branco, tinha lugar cativo no seu bolso traseiro esquerdo. Aliás, a bem da verdade, nunca gostara de carregar nada nos bolsos traseiros porque achava que aumentava o tamanho da bunda. Daí o uso das cafoníssimas carteiras porta-cheques. Não se importava em parecer cafona. Não queria era parecer gordo. Muito menos bundudo. Conferiu se o fecho eclair estava completamente fechado. Estava. Lavou as mãos. Não gostava muito da essência daquele detergente. Além do que ressecava as mãos. Enfim. Antes de sair, enxugou-as no papel toalha de baixa qualidade.

Enquanto caminhava pelo largo corredor de azulejos zebrados, reparou nos ladrilhos gastos do piso do corredor. Bonitos, pensou. Já não se usam mais ladrilhos assim. As vozes que vinham da sala indicavam que faltava apenas ele. De fato, quando cruzou a porta percebeu que todos já haviam chegado. Quer dizer, menos o vovô de barba de Shaolin. O que acontecera? Será que... Indagou onde ele estava. A resposta não veio exatamente como uma surpresa: morrera na semana seguinte à última visita do grupo. Fez-se um silêncio sepulcral entre os presentes. Alguns baixaram os olhos. Outros olhavam para cima, tentando reter as lágrimas que insistiam em brotar-lhes abundantes e que, copiosas, escorregavam dos seus olhos, molhando-ses as faces magras e pálidas.

Suspirou desalentadamente, balançando a cabeça. Sentia pena deles, como se fosse um vazio na alma. Deus, que vida... Pena, mas também inveja -- veja só que sentimentos confusos e contraditórios! Eram tão magrinhos, coitados. Tão magrinhos... Não sabia se mais magrinhos ou mais coitados. Sabia que mais cedo ou mais tarde todos teriam o mesmo final do vovô tísico. Lembrou-se da última vez que o vira, da camisa azul cuidadosamente engomada e ensacada para dentro da calça de algodão grosso. Os sapatos marrons tinham o brilho de sempre e o cheiro inconfundível de cera ODD. Com certeza ficara elegante na sua mortalha. Não é verdade que os magros ficam bem em qualquer roupa? até mesmo dentro do caixão, pensou.

Tentou, em vão conter o riso que irrompera-lhe timidamente e que, em seguida, transformara-se numa gargalhada descontrolada, de tal maneira desabrida que a pança balançava-lhe por baixo da camisa solta, fazendo com que o fecho eclair se abrisse totalmente. Todos se entreolhavam horrificados num misto de indignação e confusão mental. Não houve tempo para reações pensadas. Um a um, os internos foram-se retirando para seus quartos, entre ultrajados e humilhados.

Não sabendo o que dizer ou fazer, o líder do grupo deixou rapidamente o recinto em direção ao jardim. Nunca passara tanta vergonha, meu Deus! Nunca tivera tanta raiva em todos esses anos de visitas dominicais vespertinas ao sanatório municipal. Os demais membros o acompanharam.

Sozinho no meio da saleta ele olhava para a última velhinha a deixar o lugar, vagarosamente, com a ajuda de sua bengala. Ao cruzar a porta, ela virou-se com seu dedo trêmulo em riste e praguejou: Deus te castigue, miserável!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mundos e mundos

Não saiu de fininho tentanto se enganar, como tantos fazem, achando que ninguém perceberia sua ausência.

Passou ao lado da mesa onde estavam os doces e o bolo enorme. "Aceita um pedaço?" "Agora não, obrigado." Recusou também os canapés. Saudou alguns dos convidados, uns amigos, outros, nunca os vira antes. Ensaiou um sorriso para Felícia, por quem passara antes de sumir no corredor com uma tulipa de champagne na mão. Foi uma saida planejada, falando com uns e com outros, sorrindo plasticamente para todos com quem seus olhos se cruzaram. Não tinha mágoas nem ressentimentos, apenas não queria mais estar ali, não queria festejar uma felicidade da qual não era partícipe. Fora elegante de sua parte ir até a festa, alguns comentaram, e ele se satisfez ao ouvir essas palavras. Na verdade, era isso mesmo que havia planejado. Aparências, pensou. O mundo vive de aparências. Deixou a champagne intocada em uma mesa qualquer da entrada do salão, dirigindo-se à porta com seus muitos vitrais ricamente coloridos.

Lembrou-se da primeira vez que a beijara, quando, naquela tarde cinzenta e de muito vento concordara em acompanhá-la até a parada de ônibus. Riu-se de si mesmo e daquele beijo despretencioso, quase pudico, sem língua e sem paixão, roubado rapidamente antes dela subir no coletivo. Passou o dia com a sensação daqueles lábios aveludados roçando os seus. À noite esperou-a no portão do prédio. Ela chegou acompanhada e o beijo planejado não aconteceu. Sorriu, sem graça. "Oi". Ela acenou com a mão e com um sorriso triste, o qual ele reparou. Naquele momento nascera a paixão avassaladora que tomaria sua vida por completo e a viraria de cabeça pra baixo.

Sentiu raiva por deixar-se levar por esses devaneios fúteis. Apertou os olhos com força. Ao abri-los, tinha um sorriso amargo estampado na face. Olhava na direção do infinito, consumido pela luta contra o seu passado, quando foi subitamente interrompido pelo valete: "Seu carro está pronto, senhor." "Ah, muito obrigado." Entrou no carro, consultou as horas e lentamente foi deixando aquele lugar para trás, com sua lembranças, seu passado embaçado e infeliz. Baixou todos os vidros e elevou o som. Amava Vivaldi desde a época do colégio. Quis aprender violoncelo, mas não tivera dinheiro para comprar o instrumento. Acabou aprendendo flauta doce mesmo, todavia o gosto por Vivaldi nunca diminuiu. Deixou-se imergir pela música enquanto dirigia pelas ruas pouco movimentadas daquele sábado preguiçoso. Desejou aquele CD. Mordeu a língua para não perguntar se poderia ficar com ele, na hora que devolveu o carro à locadora. Aquele Audi fora a máquina mais sofisticada que já dirigira até então.

"Para o centro, por favor." No rádio do taxi, Reginaldo Rossi cantava um de seus clássicos. Não demorou muito até chegar ao prédio onde trabalhava. Trocou de roupa. Sentiu-se mais confortável na sua calça caqui e sua camisa verde, desbotada pelo uso. Colocou o fraque no mesmo cabide que recebera da tinturaria. Devolvê-lo-ia na segunda-feira, pela manhã. Trancou o escritório, desceu até a parada de ônibus. Olhou em volta e reconheceu seu mundo. "É," sorriu, "essa é minha a vida."

As nuvens cinzentas trazidas pelo vento prenunciavam uma noite chuvosa. Da janela do ônibus contemplava a paisagem que se modificava à medida em que se afastava da cidade.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Seruya Velázquez

Tem a voz grave de quem fumou por toda a vida. A cabeleira loira, cujos fios gastos pelo uso excessivo de tinturas ainda lembra um pouco sua sedosidade natural, reflete as mesmas luzes da noite florianopolitana que um dia lhe deram as boas vindas à vida noturna, quando pisou no Brasil pela primeira vez, naquele janeiro quente. Veio de férias, para fazer umas economias extras, porém acabou ficando por aqui.

Imbecilizada e maltratada pelos homens que lhe passaram pelas madrugadas frias ou quentes, ela é apenas mais uma puta argentina que se despe facilmente por qualquer cinquenta reais nas noites da capital barriga-verde. Mal sabe ler em seu próprio idioma. Talvez tenha cursado até o terceiro ano e, claro, é politicamente ignorante. Se algum dia ouviu falar sobre as mães de maio, esqueceu. Não tem amor a si sem a ninguém. Mas carrega no coxa direita a tatuagem do brasão portenho. Fala muito mal o português, mas os homens gostam do seu sotaque e do seu corpo. Aprendeu algumas palavras em inglês e quando está bêbada gosta de cantar sua música preferida: "Don't cry for me, Argentina".

Acredita-se europeia, fala espanhol e vive na Conselheiro Mafra. Quando não está em alguma cama, equilibra-se no alto de sua plataforma salto 15, usando meia preta arrastão, top branco e minissaia azul celeste, na Tenente Silveira. Saúda a todos os motoristas com um delicado "Buenas noches, caballero!" disfarçando seu sorriso careado.

Seu maior sonho é fazer companhia ao ídolo nacional, desfilando desnuda em frente ao Obelisco, na Plaza de la Republica, quando seu país for campeão mundial de futebol.

Pobre Seruya Velázquez. É o próprio retrato da decadência platina.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Primaveras da vida

Mais um fim de uma etapa se aproxima em meio à confusão instalada de caixas espalhadas por todo o lado, tornando o lugar caótico e intransitável. No peito, um sentimento quiçá esquisito, a incompreensível falta daquilo que deixou de acontecer, uma sensação de estranheza pelo que não houve, tão melancólica quanto aquela saudade de tempos que não vivi. E quanto mais a hora se aproxima, maior fica o buraco invisível do que haveria de ser.

Convivo com mudanças desde a tenra infância, quando, por motivos profissionais--se posso considerá-lo assim--vivíamos de cidade em cidade, pelos Brasis interiores. Às vezes, nos mudamos de endereço várias vezes na mesma cidade. Mudanças, portanto, sempre fizeram parte de mim, e hoje, quando passo muito tempo sem me mudar, sinto-me diferente daquilo que sou.

Lembro-me vagamente da primeira vez que nos mudamos. Eu tinha em torno de três anos. Não lembro da viagem, mas lembro que chegamos à tardinha na nova casa, a qual achei bem grande. Curiosa essa sensação de tamanho, porque não tenho memória alguma da casa de onde nos mudamos, entretanto tenho a nítida sensação de ter achado a nova casa enorme. Ela possuía um longo corredor central em cujo final havia duas portas, uma de frente, que dava para cozinha e outra, à esquerda, que dava pra sala de jantar. Na cozinha, o fogão à lenha ficava encostado em uma parede escurecida pela fuligem que saía da chaminé. Lembro-me bem do forno, com sua porta de ferro, de onde mamãe tirou inúmeros e deliciosos bolos de trigo. Porém, a lembrança mais vívida que tenho daquele dia é a de um banheiro de paredes cor de ocre, que ficava de frente para a porta lateral, do fim do corredor. Em cima dele havia uma tanque com alguns peixinhos, conforme me disseram naquela noitinha. Alguns dias após nossa chegada, consegui subir até o tanque e descobri, desolado, que aquela história dos peixinhos não passara de uma invenção.

Inúmeras mudanças já se passaram na minha vida. Algumas físicas, outras emocionais ou psíquicas, como queiram chamar. Ainda assim, sou esse ser mutante e mutável, inacabado, e sempre me encontrando diferente, a cada novo endereço, a cada nova estação.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Virtude

Sozinho naquele saguão de hotel, aproximei-me calmamente da parede coberta por um veludo gasto. Toquei o mármore branco e frio do balcão. Meu coração batia aceleradamente como se aquela fora a primeira ou a última vez. Novamente a mesma sensação que sentira anos antes, quando ainda acreditava nas quimeras da juventude. "Sofro de pessimismo", pensei sem querer. Olhei com irritação para o espelho da parede oposta ao Grito do Ipiranga que, de frente para mim, enorme, ocupava um lugar de destaque no salão. "Minha boca é maior que o Grito", pensei ao mesmo tempo que a amordaçava raivosamente. Pronto. Fiquei mudo assim, enquanto Dom Pedro, de braço erguido, sorria zombeteiro da minha insegurança. Forcei o sorriso. O espelho denunciava sua falsidade, ainda assim permaneci imodificado, esperando.

Do teto, pendia um candelabro com seus reluzentes sessenta e seis gomos de cristal, dos quais saía uma luminosidade amarelo opaca que alumiava todo o saguão. O brilho daquele candelabro pretendia penetrar as fendas do meu mutismo. Se tudo estivesse claro, eu estaria livre para pensar. Fechei com força os olhos e enchi o pulmão de ar. Ar quente e pesado, próprio de lugares acarpetados que ficam fechados por muito tempo. Deixei-me afundar em uma das poltronas luxuosas e excessivamente macias, sem me preocupar em quanto tempo eu estivera ali.

Na minha mente, uma sequência de imagens teimava em querer surgir com a força de uma manada de búfalos selvagens. "Não!", tentei não pensar, todavia percebi que minha cabeça sorrateiramente meneara, em negação. Deixei sair a uma só vez todo o ar dos meus pulmões e no saguão do hotel ecoou o som daquela descarga de lucidez e desesperança. Procurei uma janela. Não havia. Nem uma sequer. Foi quando, num estado de antecipação, entendi que não havia porta de entrada. Nunca houvera. Senti que o ar me faltava e abri os olhos, aturdido.

As quatro paredes estavam cobertas de palavras em latim, jornais antigos, cartas marímas e várias cópias da Carta de Caminha. Eu não a entendia nem quis entendê-la naquele momento em que toda a minha existência convergia num vórtice da sabedoria das palavras em latim. Era a minha vida diante de mim, pedindo passagem, mas eu não permitia. Todas as palavras estavam pregadas na parede, em uma fila interminável, parada, como que suspensa no ar. Em alguma estrada tortuosa da minha mente havia o registro que o conhecimento é um mito. Por isso eu não pensava nem me permitia pensar, só sabia; e seguia sabendo, enquanto procurava desesperadamente, no meio daquela fila indiana, o significado das palavras “nunc aut nunquam”.

Não houve pensamento, portanto não houve tempo. Porém ali fiquei eu, petrificado naquela poltrona excessivamente macia, com o pensamento amordaçado e os olhos impedidos de gritar por socorro.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Polos


Lá venho eu,
Caminhando contemplativo pela estrada da vida
Distanciando-me do meu próprio eu
E vivendo cada vez mais você
A paisagem bucólica na minha mente, e
O mar de emoções envolto em mim.

Você é o meu norte.

Dirijo-me ao sul
Selvagem e denso em vegetação tropical
Escura e atraente
Mata úmida
Nem sempre explorada em todo seu potencial
Entrecortada por córregos serenos e ternos
Em cujos leitos me deleito, me banho, me deixo ficar
Enebriado pelo aroma que flui daquelas águas doces.

Olho para o norte e vejo
O branco marfim resplandecendo
Por detrás dos róseos picos de vida
Que se mexem e remexem
Num terremoto sem tormenta nem dano
Posto que tão natural quanto humano,
Aguardam minhas mãos de alpinista.
Não sei quanto tempo mais me prolongo no sul,
Mas sei que o norte é o meu lugar.

De olhos semi cerrados,
Impulsionado pela ventura da viagem,
Caminho as estradas sinuosas
Que dão acesso aos ocultos dos desertos costeiros,
Áridos de vegetação, entretanto povoados de sensações mil,
Entremeados desse vale voluptuoso,
Cujo epicentro une os polos equidistantes.

No voltear do mundo chego ao norte
E encontro-me em casa.
No instante eterno em que
Austral e boreal se unem
Eclodindo em brilhos multicoloridos em fulgor
Ouço o som da festa preparada há tanto tempo,
Arrebatadora, gloriosa, plena de vida exuberante.

Olho para o meu norte, meu porto seguro, meu lugar.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

É cada uma...

Enquanto encaixotava livros, cadernos, apostilas e outros papeis para nossa mudança, deparei com um envelope sem identificação no meio da papelada da minha esposa. Apesar de curiosidade não ser um dos meus sete pecados capitais, resolvi abrir o envelope para ver do que se tratava. Para minha completa surpresa, lá estavam cópias de várias páginas de um livro cujo título não sei informar. Mas as páginas copiadas pareciam seções de capítulos cujos títulos seriam os meses do ano. Tinha cópias de "Seis de Janeiro", "Trinta de Março", etc. Reparei que são as datas dos nossos aniverários. Corri entre as páginas pra ver se tinha o meu. Tinha. Ri alto e percorri os olhos nas duas páginas relativas ao meu aniversário para descobrir do que se tratava: coisas de horóscopo, numerologia, etc. Intrigado, inquiri da minha esposa o que esses papéis estavam fazendo entre as coisas dela porque, até onde eu sei, nem ela nem eu acreditamos nesse tipo de informação. Muito pelo contrário, devo dizer. Ela sorriu e respondeu: "É que tem algumas coisas interessantes e eu resolvi copiar". A sensação de estranheza não se dissipou com essa explicação simplória. De qualquer forma, resolvi ler com mais cuidado e descobri que realmente há algumas coisas interessantes, que coincidem comigo. Antes que alguém diga que já comecei a acreditar, ou algo do tipo "está vendo?!" eu sei que se eu for ler o que está escrito nas páginas dos outros aniversários daqui de casa, vou perceber que também tem coisas que coincidem comigo. Enfim, vou transcrever abaixo alguns trechos que achei interessantes:
"Os nascidos em 15 de setembro... tem uma habilidade rara para serem especializados, perfeitos e, ao mesmo tempo, são dotados de uma visão de conjunto." - Não é bacana?! Gostei muito dessa parte.

"O tempo geralmente está do lado dos nascidos neste dia (urrú!! não é fabuloso?!), já que podem esperar pacientemente (ah, isso não... sinto muito!) afiando seus talentos, juntanto informações ou desenvolvendo suas idéias para, um dia, dar o grande salto." - Eita! Falando em grande salto, lembro-me bem das palavras de minha irmã, quando saí da casa dos meus pais: "Veja bem, Julião, cuidado na vida para não dar um salto maior do que as suas pernas!"

"Em certas ocasiões, podem querer esconder o que fazem dos familiares, dos curiosos ou mesmo dos parceiros e, em outras, compartilhar de modo íntimo e despudorado." - risos! Acertou! Mas também, quem não é assim? Tem uma uma música que diz assim: "Nisso, todo mundo é igual: anjo do bem, gênio do mal" (Perigo, de Zizi Possi. Adoro!).

"O que os motiva não é a riqueza como um fim, mas o reconhecimento do sucesso associado a ela. Os nascidos neste dia não escondem que desejam ser recompensados pelos esforços e pagos pelo que merecem." - Bacana!

"Claramente o materialismo, em diversas formas, é uma grande atração para os nascidos neste dia. Os mais evoluídos (como assim?! senti-me o próprio australô) são capazes de fazer um casamento ente o mundano e o espiritual... (esse ser aí, em evolução, definitivamente não sou eu) Os que não conseguem crescer tendem a ser cada vez mais atraídos para o luxo, o conforto e os prazeres físicos da mesa e da cama (hum... gostei dessa última parte. Será que não consegui crescer? Inquietação...), enquanto os mais íntegros permanecem produtivos e realizados." - Essa parte teve muita bobagem, fala sério!

O restante do texto fala de tarô números e planetas, saúde e conselho... Nem vale à pena comentar.

domingo, 9 de maio de 2010

Finalmente, a grande guerreira se rendeu.

Hoje foi a cerimônia fúnebre que antecedeu a cremação de tia Isa. Parentes que vivem nos quatro cantos do Brasil se reuniram no cemitério Morada da Paz, em Recife, para homenageá-la. Nós, os distantes, acompanhamos pela internet a cerimônia fúnebre muito bonita, cuja direção foi feita pelo meu tio pastor, Rev. Souza, irmão caçula de tia Isa. Muita emoção naquele ajuntamento de queridos.

Eu tinha lá meus 17-18 anos quando fui a um restaurante pela primeira vez. Sim, eu já fora a restaurantes antes para comer com a família em viagens, restaurantes de beira de estrada, provavelmente. Mas ir a um restaurante mesmo, para apreciar a comida servida por um garçom, como manda o figurino, foi só aos 17-18 anos mesmo. Quem me levou? Tia Isa, claro! Ela quem me "iniciou" no mundo dos restaurantes.

Era domingo, pouco depois do meio-dia, e estávamos saindo da igreja que passara a frequentar (também a convite de tia Isa), cujo culto havia terminado há pouco. A igreja ficava no bairro do Derby, na Rua Joaquim Nabuco. Ficava meio distante da minha casa, mas eu era vizinho dos tios Isa e Amaro e ia e voltava de carona com eles. Então, naquela tarde fazia aquele calor característico das tardes modornentas do Recife. Tia Isa e tio Amaro anunciaram: "Hoje vamos comer em um restaurante". Fiquei todo pimpão, claro! Criado em uma cidade pequena do interior, eu sempre comera em casa mesmo. Mesmo quando me mudei para a capital, mantive o costume de comer em casa, se não por outro motivo, pela falta de grana para ir a um restaurante mesmo. Portanto, aquele convite dos meus tios soou como música nos meus ouvidos.

Não me lembro do nome do restaurante. Sei que era chinês e ficava no bairro do Espinheiro. Naquela tarde saboreei um apetitoso chop suey de legumes, bife acebolado cortado em tirinhas bem finas, arroz colorido e a delícia das delícias: rolinho primavera regado a um molhinho agridoce delicioso, vermelho que só. Ah, e guaraná, claro! Nem lembro se houve sobremesa. E quem se importava?!

Até o dia de hoje, passados tantos anos, a minha comida favorita ainda é a chinesa. E sempre que tenho oportunidade de saboreá-la, lembro-me dessa minha tia querida.

Obrigado, tia Isa. Saudades de você.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Papa de Aveia


Hoje eu fiz papa de aveia para minha filha.
Coisa à toa.
Ficou gostosa.

Minha filha gosta de papa de aveia
Nem quente nem fria
Morninha
Que ela come pelas beiradas
Até chegar ao círculo do meio.
Come devagarzinho para não acabar logo.

Minha mãe me ensinou a fazer papa bem gostosa.
Tem que tirar a pele da gema, ela me disse,
E pôr um pouco de margarina.
Tem que ter açúcar e sal - eu nunca entendi o porquê dos dois.
Por que não põe um pouco menos de açúcar e se tira o sal?
Não, tem que ter os dois.
Mamãe sabia das coisas que eu não entendia.
Ela cozinhava, cantava e sorria.
À noite contava histórias sobre Deus
E sobre Jonas, que era a minha preferida,
Ela contava todas as histórias
Que eu já sabia de cor.
Eu achava graça quando ela misturava as personagens
Como se fossem ingredientes da mesma papa.
Então ela acordava com meu riso frouxo
E ria também de Noé na cova dos leões.

Hoje eu fiz papa de aveia pra minha filha.
Ela gostou.
Eu também.
A minha papa tem sabor de
Aveia, gema, margarina, açúcar e sal.
E o gosto doce da infância.
(30-mar-2007)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Noite


É noite.
Os barulhos noturnos me atormentam;
Vozes de dentro de de fora.
Vozes e barulhos,
Sons cujo volume não consigo controlar.

É noite.
Há sombras.
Há estrelas e sombras.
Estrelas distantes e sobras próximas.
Distâncias que não consigo mensurar.

É noite.
Há vida.
Há morte.
A vida está em Tuas mãos,
mas a morte sopra por trás da nuca.
Seu sopro é frio,
O hálito da vida é quente.

É noite;
Sentimentos contrários lutam.

É noite,
mas o dia vai chegar.

(10-set-2009)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O encontro que não houve.

O encontro que não houve.

Hoje eu vi a morte.
Estava uma manhã linda,
Ensolarada
Quase quente.
Ela foi a última a chegar.
Silenciosa,
Quieta,
Percorreu todo o tapete vermelho
E sentou-se devagarinho
Numa vaga do primeiro banco.
Sorrateira,
Mas eu a vi.
Era branca, quase transparente,
Toda arrumadinha,
Vestido esvoaçante e luvas finas,
Cabelo arrumado num cocó.
Maquiagem carregada.
Acho que para disfarçar o cansaço
De uma noite de muito trabalho.

Não cantou nem se levantou
E dormiu durante o sermão.

Não sei se ela me viu,
Nossos olhares não se cruzaram.
Também pudera,
Eu me sentei no penúltimo banco.
Durante todo o tempo
Ela olhou fixamente para o ataúde
Adornado com um imenso ramalhete
De alegres rosas vermelhas.

À saída,
Sem que ninguém planejasse,
Formou-se uma longa fila indiana.
A morte, então,
Correu os olhos por todos
E os deteve em um vovô
Em pé, no meio da fila.
Meneou a cabeça tristemente,
Deu um longo suspiro
Baixou a cabeça e
Foi a primeira a sair,
Puxando o esquife.

domingo, 2 de maio de 2010

Carros

Carros nas ruas. Carros nas praças.
Carros por todos os lados:
Nas avenidas, pontes, esquinas e sinais.
Param seis. Nove. Onze. Muitos.
Depois lá se vão todos correndo,
Desembestados.
Ninguém espera, ninguém olha para os lados.
Só sabem correr. Correr.
Não vêem as novas construções,
A mulher com o carrinho de bebê
Levando a filhinha pra escola,
A primavera que chegou
Abrindo flores nos canteiros das casas e lojas,
Nem o casal fazendo caminhada
Que dão bom dia com um sorriso tímido.

O tempo é um carro numa estrada de mão única,
Infinita e sem semáforos.
Indefinida e imprevisível, com curvas e ladeiras.
Passando por diversas paisagens:
Parquinhos, escolas, fazendas e praias,
Igrejas, fábricas, casas com fraldas no varal.
De vez em quando,
Do alto de uma ladeira,
A gente consegue enxergar pelo retrovisor
Um pedaço da estrada que passou.

E o carro segue indelével,
Na ventura de novos horizontes,
Deixando extasiados motoristas
Que conseguem olhar para os lados.

sábado, 1 de maio de 2010

Dois jantares diferentes


O texto a seguir é um relato de um jantar brasileiro que minha esposa e eu preparamos em 2007, quando morávamos em Athens, estado da Geórgia-EUA, e frequentávamos uma igreja local. Foi uma experiência bastante divertida. Achei-o entre os meus guardados e resolvi reescrevê-lo aqui. Espero que apreciem a leitura.

Dois jantares diferentes

Então, deixe-me contar como é que foi.
Tudo começou em março, quando fomos praticamente intimados pelos Helwig, casal líder do nosso grupo de comunhão que se reúne geralmente às 18h do segundo domingo de cada mês para jantar e, em seguida, cantar, ouvir uma palestra e orar. Uma beleza, esses encontros. Pessoal simpático e tal. Pois bem, fomos intimados a fazer um jantar à la brasileira. Eles nos deram uma quantia em dinheiro para as despesas com supermercado e minha esposa e eu faríamos tudo. Aqui cabe um parêntese: como eu nunca fiz comida para muita gente–15 pessoas, em média–e minha esposa muito menos, eu estava confiando que minha sogra, gentil e prestativamente, viesse dar uma força com esse jantar. Aceitamos o compromisso e até decidimos antecipadamente o cardápio: feijoada. Tem algo mais brasileiro que feijoada? Não. Na verdade, eu contei com os ovos ainda dentro da galinha. Quase na hora "H", minha sogra ligou dizendo que não poderia vir. Imagine o Deus-nos-acuda! Não existe aquele ditado: “Não tem tu? vai tu mesmo!”? Então! Tive que assumir a cozinha.

À noite do sábado anterior à reunião, as sobremesas já estavam prontas: pudim maria-mole de coco com goiabada, musse de maracujá, bolo de cenoura com cobertura de chocolate e bombons sonho-de-valsa. As demais coisas, todas encaminhadas: feijão de molho, arroz lavado, carnes e linguiças partidas e o frango, temperado. Fomos dormir exaustos na certeza de que uma boa noite de sono nos reporia toda a energia necessária para fazermos a feijoada-algo que nunca havíamos feito antes,-depois que voltássemos do culto matinal, que termina, normalmente, após ao meio-dia do domingo.


Três da tarde. Frenesi total. Panela pra tudo quanto é lado na nossa pequena cozinha. Feijão no fogo. Frango no forno. Panelas no fogão com cebola fritando, pra fazer a farofa. Tábua de cortar verduras ocupada com azeitonas, passas, bacon, tudo cortadinho. Um calor "duzinferno" dentro do apartamento. Um cheiro bom de comida gostosa no ar. Mila Cátea na cozinha, abanando o rabo pra gente, feliz da vida, achando que estava à porta do céu dos cachorrinhos.

Minha esposa fez um afago nela e perguntou-lhe se estava com fome. Então pegou uma banana, corta-a em pedaços e colocou na cumbuca dela. Banana é das frutas prediletas da cachorra. Mila Cátea olhou perplexa com uma cara de: “Como assim?!”

Cinco da tarde: a feijoada estava ficando pronta. O frango estava pronto. O arroz pronto. A farofa pronta. O pão-de-queijo estava quase pronto. Corre-corre pra todo mundo. Minha esposa foi levar as crianças para o grupo de comunhão deles–crianças/adolescentes–que se reúne nas dependências da igreja . Quando foi levá-las, resolveu matar dois coelhos com uma cajadada só: aproveitou as mãos livres deles para que segurassem as sobremesas e já passou na casa dos Helwig, que é onde se reúne o nosso grupo, e as deixou lá. Eu fiquei em casa vigiando o pão de queijo no forno e acondicionando as comidas da melhor forma possível para que não derramassem pelo carro, quando fôssemos até a casa dos Helwig. Em seguida, fui tomar meu banho. Imagine o cheiro de tia Nastácia após o dia todo detrás do fogão!


5h50: tudo pronto, tudo no carro. Lá fomos nós. Devagar e sempre que era pra não fazer uma lambança no carro.


Não precisaria dizer, mas vou fazê-lo mesmo assim: foi um sucesso de bilheteria. Os americanos adoraram a feijoada. Verdade seja dita: ficou mesmo uma delícia! O pão-de-queijo foi um sucesso total. Até do frango assado que, na minha modesta e humilde opinião, ficou xoxo, teve gente que repetiu. Comeram até não mais poder. As sobremesas, todas feitas por minha esposa, não ficaram atrás. Os americanos, sempre tão contidos pra provar coisas novas, comeram, comeram e comeram.


Claro que sobrou um horror de comida. Trouxemos de volta para casa quase tudo. Parêntese: aqui o povo não leva uma marmita feita no final da festa para suas casas (como é comum no Brasil), ainda que o jantar seja na casa de um irmão. Na verdade, cada um leva de volta apenas o que sobrou daquilo que trouxe. Exemplo: se você levou um refrigerante que só foi consumido pela metade, você volta pra sua casa com a outra metade do refrigerante. Bom, eu nem achei tão ruim assim esse costume, afinal agora teremos comida pra hoje, amanhã, depois de amanhã e, talvez, ainda para o dia seguinte.


Ao chegarmos em casa com nossas comidas, cansados e realizados com o sucesso do jantar brasileiro, sentimos um cheiro diferente no ar. Um cheiro bom, de fruta. Era a banana de Mila Cátea, intocada, que jazia na cumbuca dela, incensando a casa.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Aunt Isa


Today I want to reverence this great woman Isa França Neto, whose importance in my life transcends any mere description I could ever come up with. Right now she is in a hospital bed and unfortunately I don't think she will make it due to the seriousness of her illness. I wish I could have told her how much she is dear and precious to me. I wish I had told her in the last time we talked over the phone that she is simply adorable and I miss her so much. Aunt Isa, if your day is today, go rest in peace. You were this sweet angel sent by God to bless the lives of each and every nephew and niece you had. I would dare to say now that no other aunt has ever left the marks in our lives the way you did. We love you. We love you. I honor you.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

As Margaridas Amarelas

- Como eram lindas aquelas margaridas... pensei alto. No escuro da minha mente, fosforecia o amerelo e o branco daquelas duas margaridas pequenas, quase escondidas por trás daquele oco vazio e denso que havia dentro em mim. Contemplei mais uma vez o filete de água que se formara de dois ou três pingos de chuva e que descia preguiçosamente pela vidraça embaçada. Percebi que ele fazia uma curva sinuosa que insistia em não cair vertiginosamente em movimento retilíneo uniforme. Tive um sobressalto. Aquela não era a curva do rio do sítio de Seu Sivirino Biu, da perninha fina? Era. Sorri malvadamente. Eu costumava contar mentiras aos meninos da rua sobre a perna fina de Seu Biu. “Fora uma praga que seu pai lhe rogara,” eu dizia com um ar acusatório àqueles olhos esbugalhados que, de tanto pavor, tinham até medo de piscar. E eu ria dento de mim, perversamente. Por que ele cabuetara a meu pai que eu roubava goiabas? Perneta mentiroso! Apanhei tanto aquela tarde. Quis morrer. Lembro vagamente que perambulei pelo quintal, a procura da corda para me enforcar no galho da mangueira. Havia caído no poço, com vasilha e tudo, a maldita.

O barulho da chuva se espatifando na vidraça me trouxe de volta à realidade daquele quarto frio e úmido. Como eu detestava aquele porão! E o cheiro de mofo no ar? Não o podia suportar. De mofo e de margaridas. Novamente a imagem daquelas duas margaridas vieram à tona, mais vívidas, mais brancas e amarelas. A maior tinha 33 pétalas. Conferi: é, trinta e três. Pensei em quando completara 33 anos. É um número cabalístico, lembro-me de tê-lo dito despretenciosamente, sem refletir no significado daquela palavra. É a idade de Cristo. Pelo menos é o que as pessoas dizem. Filosofia barata, pura bobagem, pensei. “Não vou morrer nem com 33 nem com 66.” Desenhei no ar o número 66.

A escadaria que dava para a rua estava coberta por uma cachoeira de água barrenta que vinha descendo rua abaixo, desembestada, absoluta e truculenta, desrespeitando seus limites do meio-fio, invadindo o meu espaço sem pedir licença. Impacientei-me ante aquela vista. Por trás da vidraça embaçada eu observava a chuva que não parava de cair. A escuridão do céu tornava o dia cinzento e lúgubre. Mas não estamos em agosto? Como pode essa chuvarada, meu Deus! Afastei-me da janela lentamente, sem perder de vista a cachoeira do lado de fora. Liguei a luz. Apaguei-a num movimento automatizado. Caminhei pelo quarto, respirando ofegantemente. O coração batia acelerado e eu não entendia porque. Olhei para a parede mofada. A pintura descascando parecia que iria cair a qualquer momento. Enquanto isso, a aranha tecia freneticamente sua teia de mil e um pontos, absorta em seu trabalho, sem tomar conhecimento do que se passava lá fora. Invejei-a a despreocupação. Sorri.

Deixei-me cair na poltrona do canto da sala observando aranha trabalhar. Meu olhar atravessava a teia e se perdia no branco mofado na parede. Eu era como aquela, tecendo a teia da minha vida, sem ninguém por perto, horas a fio, cada dia um pouco mais. Só faltava a placa de aviso, afixada no primeiro fio “CUIDADO, ARANHA IMPLACÁVEL!” Um calafrio percorreu-me a espinha. Depois de tantos relacionamentos, tantas amizades, tantos contatos, não restara nem um telefonema sequer, nem mesmo uma carta esquecida na caixa de correios. Senti um misto de melancolia e solidão. A laboriosa aranha havia pousado no meu cachecol de lã. Surpreendi me deixando-a anexar meu cachecol à sua teia: “Então agora ficamos sócios. E cúmplices.”

Tornei a olhar pela vidraça. Lá fora a chuva esmaecera e a cachoeia transformara-se em no pacato riachinho da infância em cujo leito desciam lentamente 33 pétalas brancas degrau a degrau. Sobre a fórmica branco-opaca da mesa de centro jazia uma corola amarela, triste e careca.