sábado, 5 de junho de 2010

O incidente

Ajeitou as calças na cintura, puxou-as um pouco mais para cima. Não ficara bem. Puxou-as de volta para baixo. Sentiu-se pior. Exasperou-se: "Por tudo que é mais sagrado!" Desviou o olhar fingindo não entender a mensagem contundente que o velho espelho manchado pela ferrugem dos pregos que o seguravam lhe oferecia. Optou pela falsidade jovial da camisa estampada, cujos primeiros botões abertos deixavam à mostra o peito cabeludo e o cordão de ouro. Desensacou-a como que causalmente para esconder o ilhós aberto e a banha branca, comprimida pelo cinturão de couro marrom atacado no penúltimo furo. Prometeu-se pela enésima vez que recomeçaria sua dieta na próxima segunda-feira. Respirou com alguma dificuldade, tentando juntar os pedaços de sua auto-estima no chão daquele banheiro que exalava clorofórmio.

Qual o problema, capitão? Nenhum. Nenhumzinho. Sério, nenhum mesmo! Repetiu para si mesmo em voz alta: nenhum! Enxugou o suor da testa com o lenço ensebado. Agora resolvera andar de lenço no bolso da calça. Aliás, nem se dera conta de que o surrado lenço, que um dia fora branco, tinha lugar cativo no seu bolso traseiro esquerdo. Aliás, a bem da verdade, nunca gostara de carregar nada nos bolsos traseiros porque achava que aumentava o tamanho da bunda. Daí o uso das cafoníssimas carteiras porta-cheques. Não se importava em parecer cafona. Não queria era parecer gordo. Muito menos bundudo. Conferiu se o fecho eclair estava completamente fechado. Estava. Lavou as mãos. Não gostava muito da essência daquele detergente. Além do que ressecava as mãos. Enfim. Antes de sair, enxugou-as no papel toalha de baixa qualidade.

Enquanto caminhava pelo largo corredor de azulejos zebrados, reparou nos ladrilhos gastos do piso do corredor. Bonitos, pensou. Já não se usam mais ladrilhos assim. As vozes que vinham da sala indicavam que faltava apenas ele. De fato, quando cruzou a porta percebeu que todos já haviam chegado. Quer dizer, menos o vovô de barba de Shaolin. O que acontecera? Será que... Indagou onde ele estava. A resposta não veio exatamente como uma surpresa: morrera na semana seguinte à última visita do grupo. Fez-se um silêncio sepulcral entre os presentes. Alguns baixaram os olhos. Outros olhavam para cima, tentando reter as lágrimas que insistiam em brotar-lhes abundantes e que, copiosas, escorregavam dos seus olhos, molhando-ses as faces magras e pálidas.

Suspirou desalentadamente, balançando a cabeça. Sentia pena deles, como se fosse um vazio na alma. Deus, que vida... Pena, mas também inveja -- veja só que sentimentos confusos e contraditórios! Eram tão magrinhos, coitados. Tão magrinhos... Não sabia se mais magrinhos ou mais coitados. Sabia que mais cedo ou mais tarde todos teriam o mesmo final do vovô tísico. Lembrou-se da última vez que o vira, da camisa azul cuidadosamente engomada e ensacada para dentro da calça de algodão grosso. Os sapatos marrons tinham o brilho de sempre e o cheiro inconfundível de cera ODD. Com certeza ficara elegante na sua mortalha. Não é verdade que os magros ficam bem em qualquer roupa? até mesmo dentro do caixão, pensou.

Tentou, em vão conter o riso que irrompera-lhe timidamente e que, em seguida, transformara-se numa gargalhada descontrolada, de tal maneira desabrida que a pança balançava-lhe por baixo da camisa solta, fazendo com que o fecho eclair se abrisse totalmente. Todos se entreolhavam horrificados num misto de indignação e confusão mental. Não houve tempo para reações pensadas. Um a um, os internos foram-se retirando para seus quartos, entre ultrajados e humilhados.

Não sabendo o que dizer ou fazer, o líder do grupo deixou rapidamente o recinto em direção ao jardim. Nunca passara tanta vergonha, meu Deus! Nunca tivera tanta raiva em todos esses anos de visitas dominicais vespertinas ao sanatório municipal. Os demais membros o acompanharam.

Sozinho no meio da saleta ele olhava para a última velhinha a deixar o lugar, vagarosamente, com a ajuda de sua bengala. Ao cruzar a porta, ela virou-se com seu dedo trêmulo em riste e praguejou: Deus te castigue, miserável!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mundos e mundos

Não saiu de fininho tentanto se enganar, como tantos fazem, achando que ninguém perceberia sua ausência.

Passou ao lado da mesa onde estavam os doces e o bolo enorme. "Aceita um pedaço?" "Agora não, obrigado." Recusou também os canapés. Saudou alguns dos convidados, uns amigos, outros, nunca os vira antes. Ensaiou um sorriso para Felícia, por quem passara antes de sumir no corredor com uma tulipa de champagne na mão. Foi uma saida planejada, falando com uns e com outros, sorrindo plasticamente para todos com quem seus olhos se cruzaram. Não tinha mágoas nem ressentimentos, apenas não queria mais estar ali, não queria festejar uma felicidade da qual não era partícipe. Fora elegante de sua parte ir até a festa, alguns comentaram, e ele se satisfez ao ouvir essas palavras. Na verdade, era isso mesmo que havia planejado. Aparências, pensou. O mundo vive de aparências. Deixou a champagne intocada em uma mesa qualquer da entrada do salão, dirigindo-se à porta com seus muitos vitrais ricamente coloridos.

Lembrou-se da primeira vez que a beijara, quando, naquela tarde cinzenta e de muito vento concordara em acompanhá-la até a parada de ônibus. Riu-se de si mesmo e daquele beijo despretencioso, quase pudico, sem língua e sem paixão, roubado rapidamente antes dela subir no coletivo. Passou o dia com a sensação daqueles lábios aveludados roçando os seus. À noite esperou-a no portão do prédio. Ela chegou acompanhada e o beijo planejado não aconteceu. Sorriu, sem graça. "Oi". Ela acenou com a mão e com um sorriso triste, o qual ele reparou. Naquele momento nascera a paixão avassaladora que tomaria sua vida por completo e a viraria de cabeça pra baixo.

Sentiu raiva por deixar-se levar por esses devaneios fúteis. Apertou os olhos com força. Ao abri-los, tinha um sorriso amargo estampado na face. Olhava na direção do infinito, consumido pela luta contra o seu passado, quando foi subitamente interrompido pelo valete: "Seu carro está pronto, senhor." "Ah, muito obrigado." Entrou no carro, consultou as horas e lentamente foi deixando aquele lugar para trás, com sua lembranças, seu passado embaçado e infeliz. Baixou todos os vidros e elevou o som. Amava Vivaldi desde a época do colégio. Quis aprender violoncelo, mas não tivera dinheiro para comprar o instrumento. Acabou aprendendo flauta doce mesmo, todavia o gosto por Vivaldi nunca diminuiu. Deixou-se imergir pela música enquanto dirigia pelas ruas pouco movimentadas daquele sábado preguiçoso. Desejou aquele CD. Mordeu a língua para não perguntar se poderia ficar com ele, na hora que devolveu o carro à locadora. Aquele Audi fora a máquina mais sofisticada que já dirigira até então.

"Para o centro, por favor." No rádio do taxi, Reginaldo Rossi cantava um de seus clássicos. Não demorou muito até chegar ao prédio onde trabalhava. Trocou de roupa. Sentiu-se mais confortável na sua calça caqui e sua camisa verde, desbotada pelo uso. Colocou o fraque no mesmo cabide que recebera da tinturaria. Devolvê-lo-ia na segunda-feira, pela manhã. Trancou o escritório, desceu até a parada de ônibus. Olhou em volta e reconheceu seu mundo. "É," sorriu, "essa é minha a vida."

As nuvens cinzentas trazidas pelo vento prenunciavam uma noite chuvosa. Da janela do ônibus contemplava a paisagem que se modificava à medida em que se afastava da cidade.