quinta-feira, 27 de maio de 2010

Seruya Velázquez

Tem a voz grave de quem fumou por toda a vida. A cabeleira loira, cujos fios gastos pelo uso excessivo de tinturas ainda lembra um pouco sua sedosidade natural, reflete as mesmas luzes da noite florianopolitana que um dia lhe deram as boas vindas à vida noturna, quando pisou no Brasil pela primeira vez, naquele janeiro quente. Veio de férias, para fazer umas economias extras, porém acabou ficando por aqui.

Imbecilizada e maltratada pelos homens que lhe passaram pelas madrugadas frias ou quentes, ela é apenas mais uma puta argentina que se despe facilmente por qualquer cinquenta reais nas noites da capital barriga-verde. Mal sabe ler em seu próprio idioma. Talvez tenha cursado até o terceiro ano e, claro, é politicamente ignorante. Se algum dia ouviu falar sobre as mães de maio, esqueceu. Não tem amor a si sem a ninguém. Mas carrega no coxa direita a tatuagem do brasão portenho. Fala muito mal o português, mas os homens gostam do seu sotaque e do seu corpo. Aprendeu algumas palavras em inglês e quando está bêbada gosta de cantar sua música preferida: "Don't cry for me, Argentina".

Acredita-se europeia, fala espanhol e vive na Conselheiro Mafra. Quando não está em alguma cama, equilibra-se no alto de sua plataforma salto 15, usando meia preta arrastão, top branco e minissaia azul celeste, na Tenente Silveira. Saúda a todos os motoristas com um delicado "Buenas noches, caballero!" disfarçando seu sorriso careado.

Seu maior sonho é fazer companhia ao ídolo nacional, desfilando desnuda em frente ao Obelisco, na Plaza de la Republica, quando seu país for campeão mundial de futebol.

Pobre Seruya Velázquez. É o próprio retrato da decadência platina.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Primaveras da vida

Mais um fim de uma etapa se aproxima em meio à confusão instalada de caixas espalhadas por todo o lado, tornando o lugar caótico e intransitável. No peito, um sentimento quiçá esquisito, a incompreensível falta daquilo que deixou de acontecer, uma sensação de estranheza pelo que não houve, tão melancólica quanto aquela saudade de tempos que não vivi. E quanto mais a hora se aproxima, maior fica o buraco invisível do que haveria de ser.

Convivo com mudanças desde a tenra infância, quando, por motivos profissionais--se posso considerá-lo assim--vivíamos de cidade em cidade, pelos Brasis interiores. Às vezes, nos mudamos de endereço várias vezes na mesma cidade. Mudanças, portanto, sempre fizeram parte de mim, e hoje, quando passo muito tempo sem me mudar, sinto-me diferente daquilo que sou.

Lembro-me vagamente da primeira vez que nos mudamos. Eu tinha em torno de três anos. Não lembro da viagem, mas lembro que chegamos à tardinha na nova casa, a qual achei bem grande. Curiosa essa sensação de tamanho, porque não tenho memória alguma da casa de onde nos mudamos, entretanto tenho a nítida sensação de ter achado a nova casa enorme. Ela possuía um longo corredor central em cujo final havia duas portas, uma de frente, que dava para cozinha e outra, à esquerda, que dava pra sala de jantar. Na cozinha, o fogão à lenha ficava encostado em uma parede escurecida pela fuligem que saía da chaminé. Lembro-me bem do forno, com sua porta de ferro, de onde mamãe tirou inúmeros e deliciosos bolos de trigo. Porém, a lembrança mais vívida que tenho daquele dia é a de um banheiro de paredes cor de ocre, que ficava de frente para a porta lateral, do fim do corredor. Em cima dele havia uma tanque com alguns peixinhos, conforme me disseram naquela noitinha. Alguns dias após nossa chegada, consegui subir até o tanque e descobri, desolado, que aquela história dos peixinhos não passara de uma invenção.

Inúmeras mudanças já se passaram na minha vida. Algumas físicas, outras emocionais ou psíquicas, como queiram chamar. Ainda assim, sou esse ser mutante e mutável, inacabado, e sempre me encontrando diferente, a cada novo endereço, a cada nova estação.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Virtude

Sozinho naquele saguão de hotel, aproximei-me calmamente da parede coberta por um veludo gasto. Toquei o mármore branco e frio do balcão. Meu coração batia aceleradamente como se aquela fora a primeira ou a última vez. Novamente a mesma sensação que sentira anos antes, quando ainda acreditava nas quimeras da juventude. "Sofro de pessimismo", pensei sem querer. Olhei com irritação para o espelho da parede oposta ao Grito do Ipiranga que, de frente para mim, enorme, ocupava um lugar de destaque no salão. "Minha boca é maior que o Grito", pensei ao mesmo tempo que a amordaçava raivosamente. Pronto. Fiquei mudo assim, enquanto Dom Pedro, de braço erguido, sorria zombeteiro da minha insegurança. Forcei o sorriso. O espelho denunciava sua falsidade, ainda assim permaneci imodificado, esperando.

Do teto, pendia um candelabro com seus reluzentes sessenta e seis gomos de cristal, dos quais saía uma luminosidade amarelo opaca que alumiava todo o saguão. O brilho daquele candelabro pretendia penetrar as fendas do meu mutismo. Se tudo estivesse claro, eu estaria livre para pensar. Fechei com força os olhos e enchi o pulmão de ar. Ar quente e pesado, próprio de lugares acarpetados que ficam fechados por muito tempo. Deixei-me afundar em uma das poltronas luxuosas e excessivamente macias, sem me preocupar em quanto tempo eu estivera ali.

Na minha mente, uma sequência de imagens teimava em querer surgir com a força de uma manada de búfalos selvagens. "Não!", tentei não pensar, todavia percebi que minha cabeça sorrateiramente meneara, em negação. Deixei sair a uma só vez todo o ar dos meus pulmões e no saguão do hotel ecoou o som daquela descarga de lucidez e desesperança. Procurei uma janela. Não havia. Nem uma sequer. Foi quando, num estado de antecipação, entendi que não havia porta de entrada. Nunca houvera. Senti que o ar me faltava e abri os olhos, aturdido.

As quatro paredes estavam cobertas de palavras em latim, jornais antigos, cartas marímas e várias cópias da Carta de Caminha. Eu não a entendia nem quis entendê-la naquele momento em que toda a minha existência convergia num vórtice da sabedoria das palavras em latim. Era a minha vida diante de mim, pedindo passagem, mas eu não permitia. Todas as palavras estavam pregadas na parede, em uma fila interminável, parada, como que suspensa no ar. Em alguma estrada tortuosa da minha mente havia o registro que o conhecimento é um mito. Por isso eu não pensava nem me permitia pensar, só sabia; e seguia sabendo, enquanto procurava desesperadamente, no meio daquela fila indiana, o significado das palavras “nunc aut nunquam”.

Não houve pensamento, portanto não houve tempo. Porém ali fiquei eu, petrificado naquela poltrona excessivamente macia, com o pensamento amordaçado e os olhos impedidos de gritar por socorro.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Polos


Lá venho eu,
Caminhando contemplativo pela estrada da vida
Distanciando-me do meu próprio eu
E vivendo cada vez mais você
A paisagem bucólica na minha mente, e
O mar de emoções envolto em mim.

Você é o meu norte.

Dirijo-me ao sul
Selvagem e denso em vegetação tropical
Escura e atraente
Mata úmida
Nem sempre explorada em todo seu potencial
Entrecortada por córregos serenos e ternos
Em cujos leitos me deleito, me banho, me deixo ficar
Enebriado pelo aroma que flui daquelas águas doces.

Olho para o norte e vejo
O branco marfim resplandecendo
Por detrás dos róseos picos de vida
Que se mexem e remexem
Num terremoto sem tormenta nem dano
Posto que tão natural quanto humano,
Aguardam minhas mãos de alpinista.
Não sei quanto tempo mais me prolongo no sul,
Mas sei que o norte é o meu lugar.

De olhos semi cerrados,
Impulsionado pela ventura da viagem,
Caminho as estradas sinuosas
Que dão acesso aos ocultos dos desertos costeiros,
Áridos de vegetação, entretanto povoados de sensações mil,
Entremeados desse vale voluptuoso,
Cujo epicentro une os polos equidistantes.

No voltear do mundo chego ao norte
E encontro-me em casa.
No instante eterno em que
Austral e boreal se unem
Eclodindo em brilhos multicoloridos em fulgor
Ouço o som da festa preparada há tanto tempo,
Arrebatadora, gloriosa, plena de vida exuberante.

Olho para o meu norte, meu porto seguro, meu lugar.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

É cada uma...

Enquanto encaixotava livros, cadernos, apostilas e outros papeis para nossa mudança, deparei com um envelope sem identificação no meio da papelada da minha esposa. Apesar de curiosidade não ser um dos meus sete pecados capitais, resolvi abrir o envelope para ver do que se tratava. Para minha completa surpresa, lá estavam cópias de várias páginas de um livro cujo título não sei informar. Mas as páginas copiadas pareciam seções de capítulos cujos títulos seriam os meses do ano. Tinha cópias de "Seis de Janeiro", "Trinta de Março", etc. Reparei que são as datas dos nossos aniverários. Corri entre as páginas pra ver se tinha o meu. Tinha. Ri alto e percorri os olhos nas duas páginas relativas ao meu aniversário para descobrir do que se tratava: coisas de horóscopo, numerologia, etc. Intrigado, inquiri da minha esposa o que esses papéis estavam fazendo entre as coisas dela porque, até onde eu sei, nem ela nem eu acreditamos nesse tipo de informação. Muito pelo contrário, devo dizer. Ela sorriu e respondeu: "É que tem algumas coisas interessantes e eu resolvi copiar". A sensação de estranheza não se dissipou com essa explicação simplória. De qualquer forma, resolvi ler com mais cuidado e descobri que realmente há algumas coisas interessantes, que coincidem comigo. Antes que alguém diga que já comecei a acreditar, ou algo do tipo "está vendo?!" eu sei que se eu for ler o que está escrito nas páginas dos outros aniversários daqui de casa, vou perceber que também tem coisas que coincidem comigo. Enfim, vou transcrever abaixo alguns trechos que achei interessantes:
"Os nascidos em 15 de setembro... tem uma habilidade rara para serem especializados, perfeitos e, ao mesmo tempo, são dotados de uma visão de conjunto." - Não é bacana?! Gostei muito dessa parte.

"O tempo geralmente está do lado dos nascidos neste dia (urrú!! não é fabuloso?!), já que podem esperar pacientemente (ah, isso não... sinto muito!) afiando seus talentos, juntanto informações ou desenvolvendo suas idéias para, um dia, dar o grande salto." - Eita! Falando em grande salto, lembro-me bem das palavras de minha irmã, quando saí da casa dos meus pais: "Veja bem, Julião, cuidado na vida para não dar um salto maior do que as suas pernas!"

"Em certas ocasiões, podem querer esconder o que fazem dos familiares, dos curiosos ou mesmo dos parceiros e, em outras, compartilhar de modo íntimo e despudorado." - risos! Acertou! Mas também, quem não é assim? Tem uma uma música que diz assim: "Nisso, todo mundo é igual: anjo do bem, gênio do mal" (Perigo, de Zizi Possi. Adoro!).

"O que os motiva não é a riqueza como um fim, mas o reconhecimento do sucesso associado a ela. Os nascidos neste dia não escondem que desejam ser recompensados pelos esforços e pagos pelo que merecem." - Bacana!

"Claramente o materialismo, em diversas formas, é uma grande atração para os nascidos neste dia. Os mais evoluídos (como assim?! senti-me o próprio australô) são capazes de fazer um casamento ente o mundano e o espiritual... (esse ser aí, em evolução, definitivamente não sou eu) Os que não conseguem crescer tendem a ser cada vez mais atraídos para o luxo, o conforto e os prazeres físicos da mesa e da cama (hum... gostei dessa última parte. Será que não consegui crescer? Inquietação...), enquanto os mais íntegros permanecem produtivos e realizados." - Essa parte teve muita bobagem, fala sério!

O restante do texto fala de tarô números e planetas, saúde e conselho... Nem vale à pena comentar.

domingo, 9 de maio de 2010

Finalmente, a grande guerreira se rendeu.

Hoje foi a cerimônia fúnebre que antecedeu a cremação de tia Isa. Parentes que vivem nos quatro cantos do Brasil se reuniram no cemitério Morada da Paz, em Recife, para homenageá-la. Nós, os distantes, acompanhamos pela internet a cerimônia fúnebre muito bonita, cuja direção foi feita pelo meu tio pastor, Rev. Souza, irmão caçula de tia Isa. Muita emoção naquele ajuntamento de queridos.

Eu tinha lá meus 17-18 anos quando fui a um restaurante pela primeira vez. Sim, eu já fora a restaurantes antes para comer com a família em viagens, restaurantes de beira de estrada, provavelmente. Mas ir a um restaurante mesmo, para apreciar a comida servida por um garçom, como manda o figurino, foi só aos 17-18 anos mesmo. Quem me levou? Tia Isa, claro! Ela quem me "iniciou" no mundo dos restaurantes.

Era domingo, pouco depois do meio-dia, e estávamos saindo da igreja que passara a frequentar (também a convite de tia Isa), cujo culto havia terminado há pouco. A igreja ficava no bairro do Derby, na Rua Joaquim Nabuco. Ficava meio distante da minha casa, mas eu era vizinho dos tios Isa e Amaro e ia e voltava de carona com eles. Então, naquela tarde fazia aquele calor característico das tardes modornentas do Recife. Tia Isa e tio Amaro anunciaram: "Hoje vamos comer em um restaurante". Fiquei todo pimpão, claro! Criado em uma cidade pequena do interior, eu sempre comera em casa mesmo. Mesmo quando me mudei para a capital, mantive o costume de comer em casa, se não por outro motivo, pela falta de grana para ir a um restaurante mesmo. Portanto, aquele convite dos meus tios soou como música nos meus ouvidos.

Não me lembro do nome do restaurante. Sei que era chinês e ficava no bairro do Espinheiro. Naquela tarde saboreei um apetitoso chop suey de legumes, bife acebolado cortado em tirinhas bem finas, arroz colorido e a delícia das delícias: rolinho primavera regado a um molhinho agridoce delicioso, vermelho que só. Ah, e guaraná, claro! Nem lembro se houve sobremesa. E quem se importava?!

Até o dia de hoje, passados tantos anos, a minha comida favorita ainda é a chinesa. E sempre que tenho oportunidade de saboreá-la, lembro-me dessa minha tia querida.

Obrigado, tia Isa. Saudades de você.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Papa de Aveia


Hoje eu fiz papa de aveia para minha filha.
Coisa à toa.
Ficou gostosa.

Minha filha gosta de papa de aveia
Nem quente nem fria
Morninha
Que ela come pelas beiradas
Até chegar ao círculo do meio.
Come devagarzinho para não acabar logo.

Minha mãe me ensinou a fazer papa bem gostosa.
Tem que tirar a pele da gema, ela me disse,
E pôr um pouco de margarina.
Tem que ter açúcar e sal - eu nunca entendi o porquê dos dois.
Por que não põe um pouco menos de açúcar e se tira o sal?
Não, tem que ter os dois.
Mamãe sabia das coisas que eu não entendia.
Ela cozinhava, cantava e sorria.
À noite contava histórias sobre Deus
E sobre Jonas, que era a minha preferida,
Ela contava todas as histórias
Que eu já sabia de cor.
Eu achava graça quando ela misturava as personagens
Como se fossem ingredientes da mesma papa.
Então ela acordava com meu riso frouxo
E ria também de Noé na cova dos leões.

Hoje eu fiz papa de aveia pra minha filha.
Ela gostou.
Eu também.
A minha papa tem sabor de
Aveia, gema, margarina, açúcar e sal.
E o gosto doce da infância.
(30-mar-2007)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Noite


É noite.
Os barulhos noturnos me atormentam;
Vozes de dentro de de fora.
Vozes e barulhos,
Sons cujo volume não consigo controlar.

É noite.
Há sombras.
Há estrelas e sombras.
Estrelas distantes e sobras próximas.
Distâncias que não consigo mensurar.

É noite.
Há vida.
Há morte.
A vida está em Tuas mãos,
mas a morte sopra por trás da nuca.
Seu sopro é frio,
O hálito da vida é quente.

É noite;
Sentimentos contrários lutam.

É noite,
mas o dia vai chegar.

(10-set-2009)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O encontro que não houve.

O encontro que não houve.

Hoje eu vi a morte.
Estava uma manhã linda,
Ensolarada
Quase quente.
Ela foi a última a chegar.
Silenciosa,
Quieta,
Percorreu todo o tapete vermelho
E sentou-se devagarinho
Numa vaga do primeiro banco.
Sorrateira,
Mas eu a vi.
Era branca, quase transparente,
Toda arrumadinha,
Vestido esvoaçante e luvas finas,
Cabelo arrumado num cocó.
Maquiagem carregada.
Acho que para disfarçar o cansaço
De uma noite de muito trabalho.

Não cantou nem se levantou
E dormiu durante o sermão.

Não sei se ela me viu,
Nossos olhares não se cruzaram.
Também pudera,
Eu me sentei no penúltimo banco.
Durante todo o tempo
Ela olhou fixamente para o ataúde
Adornado com um imenso ramalhete
De alegres rosas vermelhas.

À saída,
Sem que ninguém planejasse,
Formou-se uma longa fila indiana.
A morte, então,
Correu os olhos por todos
E os deteve em um vovô
Em pé, no meio da fila.
Meneou a cabeça tristemente,
Deu um longo suspiro
Baixou a cabeça e
Foi a primeira a sair,
Puxando o esquife.

domingo, 2 de maio de 2010

Carros

Carros nas ruas. Carros nas praças.
Carros por todos os lados:
Nas avenidas, pontes, esquinas e sinais.
Param seis. Nove. Onze. Muitos.
Depois lá se vão todos correndo,
Desembestados.
Ninguém espera, ninguém olha para os lados.
Só sabem correr. Correr.
Não vêem as novas construções,
A mulher com o carrinho de bebê
Levando a filhinha pra escola,
A primavera que chegou
Abrindo flores nos canteiros das casas e lojas,
Nem o casal fazendo caminhada
Que dão bom dia com um sorriso tímido.

O tempo é um carro numa estrada de mão única,
Infinita e sem semáforos.
Indefinida e imprevisível, com curvas e ladeiras.
Passando por diversas paisagens:
Parquinhos, escolas, fazendas e praias,
Igrejas, fábricas, casas com fraldas no varal.
De vez em quando,
Do alto de uma ladeira,
A gente consegue enxergar pelo retrovisor
Um pedaço da estrada que passou.

E o carro segue indelével,
Na ventura de novos horizontes,
Deixando extasiados motoristas
Que conseguem olhar para os lados.

sábado, 1 de maio de 2010

Dois jantares diferentes


O texto a seguir é um relato de um jantar brasileiro que minha esposa e eu preparamos em 2007, quando morávamos em Athens, estado da Geórgia-EUA, e frequentávamos uma igreja local. Foi uma experiência bastante divertida. Achei-o entre os meus guardados e resolvi reescrevê-lo aqui. Espero que apreciem a leitura.

Dois jantares diferentes

Então, deixe-me contar como é que foi.
Tudo começou em março, quando fomos praticamente intimados pelos Helwig, casal líder do nosso grupo de comunhão que se reúne geralmente às 18h do segundo domingo de cada mês para jantar e, em seguida, cantar, ouvir uma palestra e orar. Uma beleza, esses encontros. Pessoal simpático e tal. Pois bem, fomos intimados a fazer um jantar à la brasileira. Eles nos deram uma quantia em dinheiro para as despesas com supermercado e minha esposa e eu faríamos tudo. Aqui cabe um parêntese: como eu nunca fiz comida para muita gente–15 pessoas, em média–e minha esposa muito menos, eu estava confiando que minha sogra, gentil e prestativamente, viesse dar uma força com esse jantar. Aceitamos o compromisso e até decidimos antecipadamente o cardápio: feijoada. Tem algo mais brasileiro que feijoada? Não. Na verdade, eu contei com os ovos ainda dentro da galinha. Quase na hora "H", minha sogra ligou dizendo que não poderia vir. Imagine o Deus-nos-acuda! Não existe aquele ditado: “Não tem tu? vai tu mesmo!”? Então! Tive que assumir a cozinha.

À noite do sábado anterior à reunião, as sobremesas já estavam prontas: pudim maria-mole de coco com goiabada, musse de maracujá, bolo de cenoura com cobertura de chocolate e bombons sonho-de-valsa. As demais coisas, todas encaminhadas: feijão de molho, arroz lavado, carnes e linguiças partidas e o frango, temperado. Fomos dormir exaustos na certeza de que uma boa noite de sono nos reporia toda a energia necessária para fazermos a feijoada-algo que nunca havíamos feito antes,-depois que voltássemos do culto matinal, que termina, normalmente, após ao meio-dia do domingo.


Três da tarde. Frenesi total. Panela pra tudo quanto é lado na nossa pequena cozinha. Feijão no fogo. Frango no forno. Panelas no fogão com cebola fritando, pra fazer a farofa. Tábua de cortar verduras ocupada com azeitonas, passas, bacon, tudo cortadinho. Um calor "duzinferno" dentro do apartamento. Um cheiro bom de comida gostosa no ar. Mila Cátea na cozinha, abanando o rabo pra gente, feliz da vida, achando que estava à porta do céu dos cachorrinhos.

Minha esposa fez um afago nela e perguntou-lhe se estava com fome. Então pegou uma banana, corta-a em pedaços e colocou na cumbuca dela. Banana é das frutas prediletas da cachorra. Mila Cátea olhou perplexa com uma cara de: “Como assim?!”

Cinco da tarde: a feijoada estava ficando pronta. O frango estava pronto. O arroz pronto. A farofa pronta. O pão-de-queijo estava quase pronto. Corre-corre pra todo mundo. Minha esposa foi levar as crianças para o grupo de comunhão deles–crianças/adolescentes–que se reúne nas dependências da igreja . Quando foi levá-las, resolveu matar dois coelhos com uma cajadada só: aproveitou as mãos livres deles para que segurassem as sobremesas e já passou na casa dos Helwig, que é onde se reúne o nosso grupo, e as deixou lá. Eu fiquei em casa vigiando o pão de queijo no forno e acondicionando as comidas da melhor forma possível para que não derramassem pelo carro, quando fôssemos até a casa dos Helwig. Em seguida, fui tomar meu banho. Imagine o cheiro de tia Nastácia após o dia todo detrás do fogão!


5h50: tudo pronto, tudo no carro. Lá fomos nós. Devagar e sempre que era pra não fazer uma lambança no carro.


Não precisaria dizer, mas vou fazê-lo mesmo assim: foi um sucesso de bilheteria. Os americanos adoraram a feijoada. Verdade seja dita: ficou mesmo uma delícia! O pão-de-queijo foi um sucesso total. Até do frango assado que, na minha modesta e humilde opinião, ficou xoxo, teve gente que repetiu. Comeram até não mais poder. As sobremesas, todas feitas por minha esposa, não ficaram atrás. Os americanos, sempre tão contidos pra provar coisas novas, comeram, comeram e comeram.


Claro que sobrou um horror de comida. Trouxemos de volta para casa quase tudo. Parêntese: aqui o povo não leva uma marmita feita no final da festa para suas casas (como é comum no Brasil), ainda que o jantar seja na casa de um irmão. Na verdade, cada um leva de volta apenas o que sobrou daquilo que trouxe. Exemplo: se você levou um refrigerante que só foi consumido pela metade, você volta pra sua casa com a outra metade do refrigerante. Bom, eu nem achei tão ruim assim esse costume, afinal agora teremos comida pra hoje, amanhã, depois de amanhã e, talvez, ainda para o dia seguinte.


Ao chegarmos em casa com nossas comidas, cansados e realizados com o sucesso do jantar brasileiro, sentimos um cheiro diferente no ar. Um cheiro bom, de fruta. Era a banana de Mila Cátea, intocada, que jazia na cumbuca dela, incensando a casa.