quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mundos e mundos

Não saiu de fininho tentanto se enganar, como tantos fazem, achando que ninguém perceberia sua ausência.

Passou ao lado da mesa onde estavam os doces e o bolo enorme. "Aceita um pedaço?" "Agora não, obrigado." Recusou também os canapés. Saudou alguns dos convidados, uns amigos, outros, nunca os vira antes. Ensaiou um sorriso para Felícia, por quem passara antes de sumir no corredor com uma tulipa de champagne na mão. Foi uma saida planejada, falando com uns e com outros, sorrindo plasticamente para todos com quem seus olhos se cruzaram. Não tinha mágoas nem ressentimentos, apenas não queria mais estar ali, não queria festejar uma felicidade da qual não era partícipe. Fora elegante de sua parte ir até a festa, alguns comentaram, e ele se satisfez ao ouvir essas palavras. Na verdade, era isso mesmo que havia planejado. Aparências, pensou. O mundo vive de aparências. Deixou a champagne intocada em uma mesa qualquer da entrada do salão, dirigindo-se à porta com seus muitos vitrais ricamente coloridos.

Lembrou-se da primeira vez que a beijara, quando, naquela tarde cinzenta e de muito vento concordara em acompanhá-la até a parada de ônibus. Riu-se de si mesmo e daquele beijo despretencioso, quase pudico, sem língua e sem paixão, roubado rapidamente antes dela subir no coletivo. Passou o dia com a sensação daqueles lábios aveludados roçando os seus. À noite esperou-a no portão do prédio. Ela chegou acompanhada e o beijo planejado não aconteceu. Sorriu, sem graça. "Oi". Ela acenou com a mão e com um sorriso triste, o qual ele reparou. Naquele momento nascera a paixão avassaladora que tomaria sua vida por completo e a viraria de cabeça pra baixo.

Sentiu raiva por deixar-se levar por esses devaneios fúteis. Apertou os olhos com força. Ao abri-los, tinha um sorriso amargo estampado na face. Olhava na direção do infinito, consumido pela luta contra o seu passado, quando foi subitamente interrompido pelo valete: "Seu carro está pronto, senhor." "Ah, muito obrigado." Entrou no carro, consultou as horas e lentamente foi deixando aquele lugar para trás, com sua lembranças, seu passado embaçado e infeliz. Baixou todos os vidros e elevou o som. Amava Vivaldi desde a época do colégio. Quis aprender violoncelo, mas não tivera dinheiro para comprar o instrumento. Acabou aprendendo flauta doce mesmo, todavia o gosto por Vivaldi nunca diminuiu. Deixou-se imergir pela música enquanto dirigia pelas ruas pouco movimentadas daquele sábado preguiçoso. Desejou aquele CD. Mordeu a língua para não perguntar se poderia ficar com ele, na hora que devolveu o carro à locadora. Aquele Audi fora a máquina mais sofisticada que já dirigira até então.

"Para o centro, por favor." No rádio do taxi, Reginaldo Rossi cantava um de seus clássicos. Não demorou muito até chegar ao prédio onde trabalhava. Trocou de roupa. Sentiu-se mais confortável na sua calça caqui e sua camisa verde, desbotada pelo uso. Colocou o fraque no mesmo cabide que recebera da tinturaria. Devolvê-lo-ia na segunda-feira, pela manhã. Trancou o escritório, desceu até a parada de ônibus. Olhou em volta e reconheceu seu mundo. "É," sorriu, "essa é minha a vida."

As nuvens cinzentas trazidas pelo vento prenunciavam uma noite chuvosa. Da janela do ônibus contemplava a paisagem que se modificava à medida em que se afastava da cidade.

Um comentário:

  1. Ô, coitado! Esse aí sofreu por excesso de orgulho próprio. Gostei de como você organizou a narrativa, mas não consigo me desvencilhar do conteúdo! Ai, que nervoso! :D Eu tenho horror a casos mal resolvidos. E como as pessoas sofrem por conta do que não disseram e/ou fizeram. Melhor sofrer pelo que se fez do que pelo que não se fez. Não tenho simpatia pelo seu personagem porque ele criou um problema irremediável para si porque quis...

    Mas você quer comentários literários, não? Está bem escrito e você domina bem a técnica do flashback. :)

    ResponderExcluir