quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Virtude

Sozinho naquele saguão de hotel, aproximei-me calmamente da parede coberta por um veludo gasto. Toquei o mármore branco e frio do balcão. Meu coração batia aceleradamente como se aquela fora a primeira ou a última vez. Novamente a mesma sensação que sentira anos antes, quando ainda acreditava nas quimeras da juventude. "Sofro de pessimismo", pensei sem querer. Olhei com irritação para o espelho da parede oposta ao Grito do Ipiranga que, de frente para mim, enorme, ocupava um lugar de destaque no salão. "Minha boca é maior que o Grito", pensei ao mesmo tempo que a amordaçava raivosamente. Pronto. Fiquei mudo assim, enquanto Dom Pedro, de braço erguido, sorria zombeteiro da minha insegurança. Forcei o sorriso. O espelho denunciava sua falsidade, ainda assim permaneci imodificado, esperando.

Do teto, pendia um candelabro com seus reluzentes sessenta e seis gomos de cristal, dos quais saía uma luminosidade amarelo opaca que alumiava todo o saguão. O brilho daquele candelabro pretendia penetrar as fendas do meu mutismo. Se tudo estivesse claro, eu estaria livre para pensar. Fechei com força os olhos e enchi o pulmão de ar. Ar quente e pesado, próprio de lugares acarpetados que ficam fechados por muito tempo. Deixei-me afundar em uma das poltronas luxuosas e excessivamente macias, sem me preocupar em quanto tempo eu estivera ali.

Na minha mente, uma sequência de imagens teimava em querer surgir com a força de uma manada de búfalos selvagens. "Não!", tentei não pensar, todavia percebi que minha cabeça sorrateiramente meneara, em negação. Deixei sair a uma só vez todo o ar dos meus pulmões e no saguão do hotel ecoou o som daquela descarga de lucidez e desesperança. Procurei uma janela. Não havia. Nem uma sequer. Foi quando, num estado de antecipação, entendi que não havia porta de entrada. Nunca houvera. Senti que o ar me faltava e abri os olhos, aturdido.

As quatro paredes estavam cobertas de palavras em latim, jornais antigos, cartas marímas e várias cópias da Carta de Caminha. Eu não a entendia nem quis entendê-la naquele momento em que toda a minha existência convergia num vórtice da sabedoria das palavras em latim. Era a minha vida diante de mim, pedindo passagem, mas eu não permitia. Todas as palavras estavam pregadas na parede, em uma fila interminável, parada, como que suspensa no ar. Em alguma estrada tortuosa da minha mente havia o registro que o conhecimento é um mito. Por isso eu não pensava nem me permitia pensar, só sabia; e seguia sabendo, enquanto procurava desesperadamente, no meio daquela fila indiana, o significado das palavras “nunc aut nunquam”.

Não houve pensamento, portanto não houve tempo. Porém ali fiquei eu, petrificado naquela poltrona excessivamente macia, com o pensamento amordaçado e os olhos impedidos de gritar por socorro.

3 comentários:

  1. Excelente estrutura para um mistério, e dos clássicos. A densidade psicológica se faz presente, mas sem comprometer a fluidez da narrativa. Um equilíbrio muito interessante de estilos. E tão diferente do da Margarida, não? Muito bom mesmo!

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  2. Julião, primeiramente quero explicar minha intrusão aqui.Chamou minha atenção o seu nome; é o mesmo do meu irmão caçula.E segundo, vi seu link no msn de JM (João Marcos França).Fiquei curiosa e...resolvi entrar sem bater.
    Gosto muito de ler, e seu modo de escrever me fez ir lendo tudo sem parar. Legal!
    (eu também coloco açúcar e sal na papa de aveia.rs)

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  3. Obrigado, Selmak. Você será sembre bem vinda aqui. Curioso que seu irmão e eu tenhamos o mesmo nome. Volte sempre e sinta-se a vontade para divulgar meu trabalho.
    Abraços,
    Julião Severo

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